domingo, 15 de fevereiro de 2015

Efemérides da História Lusófona: #10 Assassinaram o «general sem medo»!

Não podíamos deixar de assinalar os 50 anos decorridos sobre a morte do general Humberto Delgado. O “General sem medo”, como foi apelidado, fizera tremer decisivamente o regime salazarista, em forma de prelúdio à Revolução de Abril. As eleições presidenciais de 1958 fizeram entrar Humberto Delgado no Panteão dos Grandes Homens da Nação Portuguesa.

– Humberto Delgado, um oficial do regime –

     Nascido em 1906, em São Simão de Brogueira, concelho de Torres Novas, Humberto Delgado seguiu uma brilhante carreira militar, chegando a general com apenas 47 anos. Aos 20 anos, na Escola Prática de Artilharia de Vendas Novas, envolveu-se no movimento de 28 de maio de 1926. Já durante o Estado Novo, exerceu cargos de destaque como adjunto militar do Comando Geral da Legião Portuguesa, comissário nacional adjunto da Mocidade Portuguesa (duas organizações criadas em pleno Estado Novo, em 1936) ou ainda como representante de Portugal em Washington, junto da OTAN.
     Em 1958, foi o candidato da oposição às eleições presidenciais. O apoio que conseguiu da população foi o mais expressivo que a oposição ao regime tinha tido até aí. Salazar sentiu-se verdadeiramente ameaçado pelo general que, pela sua campanha corajosa e frontal, ficou conhecido como o “General sem medo”. Os resultados oficiais deram-lhe apenas 25% dos votos, mas Humberto Delgado afirmou ter havido fraude e ser ele o verdadeiro vencedor. Perseguido pelo Regime, acabou por se refugiar no Brasil.

Humberto Delgado e Henrique Delgado, em 1961
http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_115252 (2015-02-10)


     Em 1961, em conjunto com outro militar, o capitão Henrique Galvão, levou a cabo o sequestro do paquete Santa Maria, em protesto contra o regime de Salazar. Algum tempo mais tarde, instalou-se na Argélia. Em 1965, quando tentava entrar em Portugal (disfarçado – pois ainda era perseguido pelo Regime), foi assassinado em Espanha, perto da fronteira portuguesa, por elementos da polícia política, a PIDE (a ação, organizada pelo agente Rosa Casaco, fora apelidada de “Operação Outono”).

– Delgado é candidato!  A oposição acredita conseguir derrubar Salazar –

     A partir de 1933, Portugal viveu sob um regime autoritário, com características próprias de uma ditadura: os partidos políticos e os sindicatos foram proibidos, a imprensa era censurada e a polícia política perseguia os opositores ao regime (muitos foram torturados e alguns até assassinados). Em 1939, deflagrou a IIª Guerra Mundial, um conflito que opôs, de um lado, os Estados do Eixo – Alemanha, Itália (Estados fascistas pelos quais Salazar tinha alguma simpatia) e Japão – e do outro, os Aliados – França, Inglaterra, URSS e Estados Unidos.
     A Alemanha, liderado por Hitler, invadiu vários países europeus procurando afirmar o seu poder no continente. A derrota dos regimes autoritários (como Portugal) contra as democracias liberais levou a oposição ao Estado Novo a acreditar na possibilidade de derrubar Salazar. Este, em 1945, pressionado pela situação internacional, convocou eleições legislativas, dizendo mesmo que seriam «tão livres como na livre Inglaterra». A oposição organizou-se no MUD (Movimento de Unidade Democrática) e conseguiu grande apoio popular. Porém, a única condição dada pelo regime à oposição foi aliviar um pouco a censura. Sem possibilidades de se opor à União Nacional (o partido do regime, e único), o MUD retirou as candidaturas. Nas eleições presidenciais de 1949, a oposição apresentou também um candidato, o general Norton de Matos. Apesar do apoio popular que recebeu, decidiu, pelas mesmas razões, desistir à boca das urnas. O regime, entretanto, perseguiu muitos dos que tinham apoiado os candidatos da oposição.

Fotografia oficial do candidato Humberto Delgado à Presidência da República

     Em 1958, nas eleições presidenciais, o candidato da oposição foi o general Humberto Delgado. A sua candidatura foi o grande momento da oposição ao regime de Salazar. O general conseguiu atrair um imenso apoio popular. Onde quer que fosse, era recebido em apoteose por imensuráveis multidões. Embora o vencedor das eleições (que muitos observadores e a oposição consideraram fraudulentas) viesse a ser o candidato da União Nacional, Américo Tomás, o Estado Novo tremeu.

– «Obviamente demito-o» –

     A figura do Presidente da República fora sempre subalternizada durante o período do Estado Novo, no entanto, a Constituição de 11 de abril de 1933, em vigor por alturas das eleições de 1958, atribuía ao Presidente da República alguns poderes significativos: em particular, o artigo 81º que indica, no seu primeiro ponto, que compete ao Presidente da República «Nomear o Presidente do Conselho e os Ministros de entre os cidadãos portugueses, e demiti-los.» Afinal, o que estava em jogo no dia 8 de junho de 1958, dia da votação, era decisivo para a continuidade do regime.

Humberto Delgado durante a sua famosa intervenção no Café Chave d'Ouro

     Na conferência de imprensa convocada para o Café Chave d’Ouro em Lisboa, a 10 de maio, perguntaram a Humberto Delgado o que faria com Salazar se fosse eleito. O general respondeu com a sua habitual frontalidade: «Obviamente, demito-o». A candidatura tornara-se uma ameaça séria ao Estado Novo, tão séria que após estas eleições a lei eleitoral foi alterada. O Presidente da República passou a ser eleito por um colégio eleitoral em vez do sufrágio direto dos cidadãos. 

– «Euforia no Porto» –

     A campanha eleitoral desenvolvida por Delgado irrompe na monotonia política portuguesa de forma avassaladora, pelo radicalismo das suas propostas e, em larga medida, pelo dinamismo com o qual as derrama por todo o país; Le Figaro, de forma caricatural, apresenta-o como o «général dynamite». Habituada aos enfadonhos comícios e reuniões eleitorais, enclausurados em recintos fechados, a população portuguesa depara-se com a agressividade da propaganda de rua organizada pela candidatura oposicionista. Humberto Delgado leva para junto da população as suas palavras de ordem, o seu carisma e o seu dinamismo destemido que lhe valerão o célebre cognome de «general sem medo». Esta nova forma de “fazer política” não será, com certeza, alheia à passagem do general pelos Estados Unidos, num período em que vira a ascensão de Dwight “Ike” Eisenhower à presidência da nação americana, também ele militar, cuja campanha ficara famosa pelo célebre lema “I like Ike”. É uma campanha “à americana” que o “general sem medo” inicia no Café Chave d’Ouro, em Lisboa.

Cartaz de propaganda eleitoral da campanha de Humberto Delgado fazendo eco da manifestação,
de 14 de maio na cidade do Porto
http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_114181 (2015-02-10)

     Humberto Delgado percorreu o país de norte a sul. Em todos os locais conseguiu sempre atrair enormes multidões que queriam ver de perto o já famoso “general sem medo”. Mas foi no Porto que aconteceu a maior receção. Vasco da Gama Fernandes, na sua obra Depoimento Inacabado, descreve o acontecimento que presenciou: «O general era arrastado por mais de duzentas mil pessoas, na maior apoteose a que até hoje assisti. […] Na praça da Batalha e na avenida, a multidão não se cansava de o vitoriar, com vivas à República, à liberdade e ao “general sem medo” […] centenas de pessoas que, até alta madrugada, permaneceram na frente do hotel e fizeram frente à Guarda Republicana e à polícia de choque, que não conseguiram dispersar os manifestantes.»

PARA SABER MAIS:
http://ensina.rtp.pt/artigo/obviamente-demito-o-documentario/
http://ensina.rtp.pt/artigo/humberto-delgado-presidenciais/
http://ensina.rtp.pt/artigo/humberto-delgado/


Fontes:
Ruben Castro e Ricardo Ferrand, Grandes datas de Portugal (1096-2007), Texto Editores, Lisboa, 2011.
Paulo Miguel Guerra, As eleições de 1958 e a imprensa francesa, Faculdade de Letras da Univ. de Coimbra, Coimbra, 2004.

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